8.5.07

PRESSA

A manhã é parada dentro do carro
O carro parado no tempo
O tempo parado no trânsito
O trânsito é uma via rápida parada, uma via lenta adormecida ao sol da manhã.
No carro, ela olha para o espelho, retoca o batom e arranja o cabelo.
Pára, arranca, pára mais do que arranca e mergulha na sombra, devagar. Pára.
Ao lado: um prédio, construção económica de bairro social, degradado, cinzento – uma sombra projectada, um túnel escuro.
Inquieta-se, vai chegar atrasada. Os carros compactos em fila, parados.
Numa janela: um olhar: parado
Um rosto cavado, sem dono, à espreita. Espião de sonhos
A manhã é uma sombra que espreita de uma janela com a roupa estendida a secar, cinzenta sobre a via rápida.
Incomodada disfarça, não olha, não pensa,não lamenta. Acelera sem sair do lugar - tem pressa, quer fugir.
Não resiste: olha novamente e lá está ele, o cadáver, estático. Pousado como um boneco, sentado numa cadeira, a aguardar o fim da tarde, o fim da vida. A vida que já é tarde. O corpo velho a cheirar a mijo, numa decomposição antes da morte.
A manhã avança dentro do carro
O carro avança no tempo
O tempo avança no trânsito
A vida é um momento breve que acaba num suspiro muito longo.
A sombra é agora um pontinho escuro que vê pelo retrovisor. O sol invade o carro, obrigando-a a pôr óculos escuros. Está atrasada. Acelera. Tem pressa, pressa de viver.

6 comentários:

Anónimo disse...

Evidência pouco perceptível a quem anda na vida por andar e faz do seu carro no transito uma espécie de útero. Não é que há um modelo da Nissan chamado "Cocoon"...

Anónimo disse...

Tal e Qual!
Muito bem pensado.
Gostei muito.
Parabéns!

Anónimo disse...

Gostei do ritmo! Embala-nos para outras paragens com o ritmo que MC já nos habituou.
Sem pressa vou para o tráfego.
Ricardo P.

Anónimo disse...

Como dizes a vida é uma correria!
Lutamos contra o tempo que foge sem nos apercebermos... de tão rápido que andamos... e só damos conta quando ficamos exaustos de tanto correr!! e aí pensamos, porquê tanta correria? Vale a pena? não sei...!!! mesmo sem saber continuamos a correr....
É pena a justiça neste país não pensar assim e continuar a ser tão lenta! Talvez seja uma das razões porque tantos..... tanto correm....

Anónimo disse...

Adorei!!!! Lindo, bem pensado, bem escrito, bem sentido.......Estas em toda parte e encontras-te em bocadinhos do mundo que ninguem ve. Mais do que dos teus poemas estou maravilhada em conhecer-te devagarinho, tu, poeta!

Anónimo disse...

Caríssima MC,
Sou um viajante virtual, qual Quixote em busca dos seus fantasmas.
Gostei muito do carácter revelatório, quase iniciático com que entramos no seu castelo de emoções selvagens, oscilando entre o branco e o negro como um metrónomo com o ritmo afinado pelo bater do coração. É notável o “Pressa”: são verdadeiras singularidades de uma rapariga loura (não sei porquê mas achei que foi escrito na primeira pessoa e a imagem mental que criei de si é de uma mulher afirmada, sofisticada, inteligente e… loura).
Da leitura de todos perpassa a condição feminina; confirmam-na os diversos posts. Alguns parecem-me ser seus próximos e senti por isso a falta de mais visitantes, tantos quantos a sua escrita merece; já pensou em enriquecer o seu blog com links para os seus blogs favoritos? Dê-se a conhecer ainda mais para que não faltem links para o P:E:O.